[esta terra mal amada - 3]

Sexta-feira



Todos temos a ilusão de importância, de que o que dizemos conta e o que fazemos faz diferença. Mesmo sentindo tantas vezes o contrário, no fundo acreditamos que somos relevantes “no esquema das coisas”. Desejamos exprimir essa relevância, participar na discussão geral e resolver os problemas do mundo. O que se passa na blogosfera é disso exemplo. Lamentavelmente, o registo não é construtivo nem regido pela boa vontade. Reina a sede de protagonismo e a masturbação de egos dos encoleirados fiéis de ideologias político-partidárias.
As ideologias morreram ou foram trituradas na máquina de embutir dos public relations. Ninguém quer o desamparo da verdade, da complexidade. Queremos o bom e o barato, queremos o mundo fácil que dá milhões. Os próprios jornalistas, enredados no carrossel que eles próprios criam, embarcam na lógica dos absolutos simplismos. Que país confrangedor em que o povo é visto e analisado como uma cambada a correr atrás das migalhas eleitorais, como se 2% aqui ou uma descida dos impostos ali pudessem ser trunfos determinantes da orientação do voto popular.

É difícil, para os que questionam o seu papel no meio que os envolve, não cair na inquietação. Se não queremos acreditar apenas no que satisfaz os nossos medos e inseguranças, se quisermos a verdade, então à nossa frente estende-se o caminho de consecutivas dúvidas. Mas entre a segurança da mentira e o desamparo da verdade, o que escolhemos nós afinal?

Que tal escolhermos a verdade por uma vez. Que tal começarmos por olhar para essa pobreza estrutural do país, uma pobreza que não é financeira mas está entranhada na nossa cultura. Pacheco Pereira fala da mediocridade de um país falhado após milhões e milhões de contos de apoios comunitários. E agora, eis-nos de novo a ver esfumar os fumos da Índia. Como há seculos, voltámos a ser um país vivendo na ilusão das riquezas alheias, da prosperidade ilusória e conjuntural que esbarra finalmente com a sua pobreza definitiva. Estruturalmente na mesma. E a pergunta, tantas vezes repetida que se tornou ridícula: para onde foi o dinheiro afinal?

Por isso não pode ser mais paradoxal o wishful thinking de Pacheco Pereira com o seu desejo de um regresso de Cavaco Silva à governação. Talvez esteja afinal a ironizar, chamando Cavaco a um jogo que ele não está disposto a jogar. Mas este argumento messiânico colhe, este complexo sebastianista, de alguém que venha das brumas para nos salvar a todos. Já o nome de Cavaco se ouve e se repete por entre o nevoeiro da crise.
Quer se queira quer não, mesmo Cavaco com o seu capital de credibilidade e rigor, foi incapaz de mudar o rumo dos fumos comunitários. Foram esses milhões e milhões que alimentaram o ciclo de prosperidade e permitiram aos governos cavaquistas navegar a onda do oásis. O país acreditou na ilusão dos fundos comunitários transformados em BMWs, mas enquanto outros se desenvolviam, nós ficámos a assobiar para o ar como quem espera que a factura nunca venha. Mas eis que chegou.

Chegou a hora de dizer adeus ao desejado Dom Sebastião. O Messias não virá afinal. Estamos entregues a nós próprios e talvez seja melhor assim. E agora não há que dramatizar, porque das duas uma: ou o país se mobiliza com seriedade e trabalho para vencer aceitando as inquietações de quem prefere a verdade, ou o país persiste no fogo de artifício de quem não está disposto a fazer sacrifícios até que a crise seja irreversível. Não haja ilusões: o barco range e ao longe ouvem-se trovões mas a tempestade ainda está para vir.

Seja como for, e com todos os defeitos do sistema, isto ainda é uma democracia. Somos nós que escolhemos. E é assim que deve ser.

Mais:
[Esta Terra Mal Amada, 2004-01-13]
[Esta Terra Mal Amada - 2, 2004-07-30]

1 comentário:

  1. "...ou o país se mobiliza com seriedade e trabalho para vencer aceitando as inquietações de quem prefere a verdade, ou o país persiste no fogo de artifício de quem não está disposto a fazer sacrifícios até que a crise seja irreversível...": então e a mediocridade da nossa educação e da nossa cultura? Vai permitir que isto aconteça? Se o nosso motor fosse "a crise" acho que já tinhamos arrancado...

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