JA#240 SER INDEPENDENTE



Este texto foi publicado no Jornal Arquitectos #240.

A CHUVA QUE TARDA EM CHEGAR

[1]

Com que sentido enunciamos palavras como independência, liberdade ou outros ideais tão queridos da geração pós-Maio de ’68, neste Portugal contemporâneo? Reconhecemo-los enquanto valores matriciais da nossa experiência democrática? Ou antes como meras expressões para preencher, à boca cheia, o vazio de retórica?
Portugal, hoje detentor de um estado massivo e uma desconfiança generalizada para com a actividade individual, apresenta-se no contexto europeu como um dos países mais adversos ao investimento e à criação de emprego, incapaz de conter o crescimento do endividamento público e privado.

Como pode uma nova geração, herdeira destes e de tantos outros problemas, sonhar com esses valores com que outros se arrogaram construir uma existência. Como podem os próximos portugueses ousar a independência, saindo de um sistema educativo arcaico, completamente alheado das necessidades da vida privada.
Serão as nossas faculdades de arquitectura lugares generosos, empenhados em investir os seus alunos com o conhecimento, a humildade e a consciência que conduzam o futuro das suas vidas? Em boa verdade, vejo muitos desses jovens dotados de um certeiro domínio da linguagem da profissão, dirimindo a retórica dos volumes, paramentos, embasamentos, como se de movimentos de esgrima se tratassem, para com eles exprimir banalidades. A linguagem é o último reduto da falência universitária pós-massificação, espécie de testemunho ritual identitário em que todos, e em particular a crítica, se parecem enquistar.

Também eles correm o risco de submergir na espessa nuvem de estado e corporativismo que asfixia a democracia em Portugal, hoje um dos países mais desiguais da Europa. A visibilidade e o sucesso persistirá para aqueles que, tal como hoje, se consigam estabelecer nos fios condutores dos laços familiares, das instituições académicas, das estruturas políticas, das ordens profissionais. Portugal arrisca-se, por fim, a ter como maior exportação o seu próprio povo, fugindo em busca de emprego e da promessa de uma vida impossível de construir aqui mesmo. Em busca, talvez, de um sonho chamado independência.

[2]

Numa das suas belas palestras sobre educação Ken Robinson fala do seu fascínio pelo Vale da Morte. Naquela extensão árida do Deserto do Mojave, na fronteira entre a Califórnia e o Nevada, quase nunca chove e nada, absolutamente nada, cresce. O milagre aconteceu na improvável Primavera de 2005, quando a chuva abençoou o vale fazendo brotar uma vastidão infinita de flores de muitas cores estendendo-se até ao horizonte. O fenómeno atraiu milhares de pessoas que quiseram testemunhar o aparecimento de vida num dos territórios mais inóspitos do planeta. O Vale da Morte, afinal, nunca estivera morto, antes adormecido à espera de condições que fizessem nascer as sementes cravadas nas profundezas da terra, onde o calor mortal não chega.

1 comentário:

  1. Marta Rosado da Fonseca4:05 da tarde, fevereiro 04, 2011

    Muito bom Daniel. Ainda espero que chova um dia destes e que a nossa geração brote!

    ResponderEliminar