Dejected lovers

Zaha Hadid é de facto uma “mulher do seu tempo”, como alguém dizia, e na sua obra podemos ler as marcas e, sobretudo, as ilusões que animaram esse tempo que hoje tanto pesa sobre nós.

— Pedro Levi Bismarck, Duas ou três coisas que se podem dizer sobre ela (Zaha Hadid).

A reflexão (curta mas difícil) que partilhei no dia da morte de Zaha Hadid tomava como ponto de partida a influência que o seu trabalho teve na formação dos arquitectos da nossa geração. O ensaio do Lebbeus Woods, escrito em 2008, servia de janela para aquele mundo aberto pelos seus desenhos, em particular no período entre as décadas de oitenta e noventa.

A referência a Lebbeus Woods não era inocente. Ele, como poucos, foi capaz de apreciar as qualidades indiscutíveis da Zaha Hadid sem abdicar de ter sobre o seu percurso um olhar crítico. Aquele mesmo texto (Protoarchitecture: Analogue and Digital Hybrids) terminava exprimindo perplexidade e angústia sobre o trajecto entre uma estética fragmentária, pluralista e democrática, e uma arquitectura de grandes gestos, elegante, eficaz, mas também inerentemente autocrática.

Fragmentation is inherently democratic, regardless of how dominated at any moment by one style or another—that, after all, remains a measure of choice. Big gestures, however elegant or effective they may be, are inherently autocratic. Here we stand at the precipitous divide between art and politics, which is exactly the domain of architecture in any age. It is the edge on which the drawings and projects of Zaha Hadid are, at this moment, delicately poised.

— Lebbeus Woods, Zaha Hadid’s Drawings 3 (Protoarchitecture: Analogue and Digital Hybrids).

Lebbeus Woods viria a abordar a obra de Zaha Hadid diversas vezes, acentuando esse olhar crítico e crescentemente divergente – sem nunca pôr em causa a enorme admiração que tinha por ela. Em Zaha’s Way, escrito em 2011, refere explicitamente o perigo do abandono daquela arquitectura por um compromisso com a era da incerteza da condição humana vivida no presente.

Aware of the history of the past hundred years and the turbulent character of the present, such an attitude can only seem arrogant and self-indulgent. This appraisal is not simply about images, but about buildings, even masterpieces of architecture regarded as an extension of an architectural history of masterpieces, that are utterly oblivious to the uncertain and conflicted human condition of today, which is unprecedented in history.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Way.

Um ano depois Woods voltava a criticar o trabalho de Zaha Hadid, dedicando-lhe “uma espécie de carta de amor”: «Don’t you love me anymore?»

I feel abandoned and bereft because one the most gifted architects of my time has been reduced to wrapping such conventional programs of use in merely expressionistic forms, without letting a single ray of her genius illuminate the human condition. Am I being pretentious and overly demanding? Of course. But that’s the way disappointed lovers behave. Exaggerated emotions. Absurd demands. Anger that transgresses all reason. She has let me down, and what makes it worse is that she apparently couldn’t care less.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Aquatic Center.

O texto do Pedro Bismarck é muito interessante e mergulha exactamente nessa perplexidade histórica, com que hoje tanto nos confrontamos, e que eu partilho em absoluto – uma perplexidade que está no cerne do conflito que marca a nossa disciplina neste início de século e a que procurei fazer referência numa reflexão anterior – ler The great architectural divide. Tratava-se de questionar o modo como o “parametricismo”, entranhado numa retórica “liberal de mercado”, parece correr o risco de se tornar rapidamente uma arquitectura do passado, mesmo nas suas manifestações vindouras.

Certo é que, independentemente da divergência que possamos ter com as obras de Zaha Hadid, ela foi indiscutivelmente “uma mulher do nosso tempo” e é, no que à arquitectura diz respeito, a mulher do nosso tempo. Não será possível fazer a história crítica da arquitectura deste período histórico sem que Zaha Hadid ocupe, para o bem e para o mal, nas suas qualidades e nas perplexidades que nos invoca, um lugar central.

Mas talvez Lebbeus Woods o tenha identificado com vários anos de avanço. É que, perante o percurso (irremediavelmente inacabado) da obra de Zaha Hadid, quedamo-nos todos como “amantes entristecidos”.

What is urgently needed now is the very antithesis of utopian purity: masterpieces of imperfection.

— Lebbeus Woods, Zaha’s Way.


Image credits: Zaha Hadid, The World (89 degrees), 1983.

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